Gaúcho, o Dialeto Crioulo Rio-Grandense

Felipe Simões Pires


Historicamente, o Rio Grande do Sul, estado ao extremo sul do Brasil, sempre foi uma região de conflitos e de culturas diversas. Numa área pertencente à Espanha pelo Tratado de Tordesilhas, alguns portugueses fincaram o pé em partes da localidade no intuito de tomar as terras dos espanhóis, mas esqueciam-se todos que os donos legítimos da terra eram os índios. Na prática, nunca houve divisão de fato dos territórios do pampa rio-grandense, pampa argentino e pampa uruguaio, proporcionando uma integração – nem sempre pacífica – entre os três povos. Do convívio entre os imigrantes espanhóis e portugueses com os índios surgiram muitas misturas raciais originando o que se chamou de “raça gaúcha” (cafuzos de índios je-tupi-guarani com ibero-europeus) e o surgimento involuntário de uma cultura completa que era compartilhada pelos povos.

Em conflito constante com os “castelhanos” (argentinos e uruguaios de ascendência castelhana) e com os portugueses (então colonizadores do Brasil), os gaúchos continuavam ignorando os limites políticos entre os territórios, mas criavam seu próprio isolamento  cultural. (1)

Na tentativa de não se identificarem nem com os portugueses (dominadores) e, posteriormente, brasileiros, (2) nem com os espanhóis (invasores), os rio-grandenses criaram um modo particular de vestir, falar e agir, que pouco se diferenciava das características típicas dos “gauchos” (lê-se ‘gáutxos’ em espanhol) dos pampas cisplatino e platino. Os hábitos do churrasco, do chimarrão, da indumentária e quase toda a tradição permaneceram muito semelhantes após todo o período de ebulição, mas a língua foi diferenciando-se.

Numa tentativa de mostrar para os “castelhanos” que falavam português e para os “imperialistas” que falavam espanhol, adicionando-se muitas expressões indígenas e algumas africanas, (3) surgiu uma linguagem híbrida, compreendida por todas as partes envolvidas no período, mas impossível de ser dominada por um “chucro”. Marcado pela grande ligação afetiva do gaúcho por seus animais, a maioria das expressões que se referem a animais, também se referem às pessoas.

A formação do dialeto se dá, basicamente, por:

  1. vocábulos hispano-luso-indígenas
  2. aumentativos e diminutivos hispânicos
  3. escrita lusitana
  4. pronúncia baseada no português, mas lida como no espanhol
  5. falta de uma gramática oficial, mantendo o dialeto constantemente mutante e flexível
  6. A pronúncia do “o” e do “e” são feitas como no Espanhol quando se alterariam para “u” e “i” no Português.
  7. O diminutivo “inho” quase sempre e substituído por “ito”, mas há casos onde sobrevive. Recorde-se que não há regra oficial para a fala campeira e que a maioria das pessoas sequer sabem que não falam Português nem Espanhol.
  8. O pronome “lhe”, quase sempre é pronunciado “le”.
  9. Há uma grande dificuldade entre os nativos para saberem quando pronunciar “b” ou “v”, pois flutuam entre a gramática portuguesa e espanhola.
  10. As palavras que têm dupla escrita de “x” ou “ch”, têm no “ch” sua escrita castelhana e “x” lusitana (galega).
Algumas expressões típicas da gauchada: Abaixo, alguns trechos dos Contos Gauchescos, livro publicado em 1912 e que, apesar do tempo passado, permanece atual, pois a linguagem pampeana não se modificou muito ao longo dos anos, devido ao relativo isolamento. Perceba-se que quando Simões Lopes Neto escreveu, não fazia a mínima idéia de que narrava histórias em um dialeto e tenta adequar o texto à gramática brasileira da época.
“Ah! Esqueci de dizer-lhe que andava comigo um cachorrinho brasino, um cusco mui esperto...”
Seguindo a regra do Espanhol, há “mui” e “muito”, utilizados nas mesmas condições do Espanhol. Contudo, essa é uma frase muito mais próxima do Português que a maioria das outras frases gaúchas, pois utiliza o verbo “esquecer” (mais usual “olvidar”) e o diminutivo “inho” (mais usual “ito”).
“Chinoca airosa,
Lindaça como o sol, fresca como uma rosa”
Tanto as desinências “oca” e “aça” quanto o adjetivo “airosa” são advindos do Espanhol, e utilizados largamente.
“Nisto, um aspa-torta, gaúcho mui andado no mundo e mitrado, puxou-me pela manga da japona...”
A ênclise utilizada pelo autor não visa a adequar-se ao português culto, até porque o livro é uma narrativa em primeira pessoa, mas retrata sua utilização natural pelo gaúcho.
“Cuê-pucha!... é bicho mau, o homem. Conte vancê as maldades que nós fazemos (...), nunca me esqueço dum caso que vi e que me ficou cá na lembrança e ficará té eu morrer”
O “vancê”, embora não esteja de acordo com a regra gramatical, indica a utilização dos pronomes pessoal (tu) e de tratamento (você) em situações claramente definidas, ao contrário do Português Brasileiro e de acordo com o Português Europeu e o Espanhol Castelhano.

Quando diz “que me ficou”, utiliza o pronome “me” onde, seguramente seria utilizado por um hispânico, e não o seria por um luso-brasileiro.

“O outro, o ruivo (...), vinha todo de preto, com um gabão de pano piloto (...) e de botas russilhonas, sem esporas”.
“Pela pinta devia ser mui maturrango.”
Ruivo, não corresponde ao “ruivo” do Português (cabelo avermelhado), mas ao “rubio” do Espanhol (loiro).
“E baixinho, fuzilando nos olhos, boquejou-me: - aquele é o imperador, se te enredas nas quartas, defumo-te”.
Novamente, o jogo de próclises e ênclises assentadas naturalmente pelos nativos e ignorados na língua falada brasileira.
“Desde 45, no Ponche Verde; fui eu que uma madrugada levei a vossa excelência um ofício reservado, pra sua mão própria... e tive que lanhar uns quantos baianos abelhudos que entenderam de me tomar o papel... Vossa excelência mandou-me dormir e comer na sua barraca, e no outro dia me regalou um picaço grande, mui lindo, que...”
“Regalou”, “picaço” e “mui lindo” sustenta a regra informal de orientação da linguagem falada no pampa.

Alguns versos da música “O Esquilador”:

“Quase um pesadelo arrepia o pelo
Do couro curtido do esquilador
Ao cambiar de sorte levou um cimbronaço
Ouvindo o compasso tocado a motor”

“Envidou os pagos numa só parada
"Trinta e três de espadas" mas perdeu todas de mão
Nesta vida guapa vivendo de inhapa
Vai voltar aos pagos para remoçar”

Bibliografia indicada:


 

Notes:


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© Zdravko Batzarov